«Á VOLTA DA SANTINHA DE FAFE
(Do
nosso convidado especial o Reporter X)
(clichés
de Alvaro Martins)
Para
lá chegar é necessário ter os «riñones de bronce» que o poeta cubano enxerta na
matrona da «Liberdade», erguida à entrada de New-York…
Do
Porto a Guimarães. O auto é sacudido, levantado, afundado nos milhares de covas
que transformam os caminhos num mar revolto, encapelado de ondas de terra e
pedra e lama…
Mas
de Guimarães em diante as estradas alizam-se, abonecadas e floridas, e acabam
por se encoracolar num sacarôlhas de apertada espiral, cercado pela scenografia
altiva das montanhas…
A
arborização compacta, reberbera, através dos cristais da atmosfera límpida,
coagulando num só tom, todos os tons verdes que a retina possa apreciar… E
empoleirada, um prodígio de equilíbrio, surge-nos, ao cabo de duas horas de
viagem, uma vila de alvíssima casaria, risonha e ingénua…
Estamos
em Fafe…
A
«SANTINHA»
O
chauffeur já em tempos trouxera do Porto uma dama de rosto velado, a
transparentar segredo amoroso que queria consultar a «Santinha…» Mas
recordava-se mal da topografia da vila… E o auto, tiroteando, roda, um pouco à
toa, pelo labirinto do bairro, à busca dum ponto de referência. E súbito,
roncam os travões:
-
É aqui! Garante. Mas já não me lembro do número!
Apiei-me
e tratei de me orientar… Num dístico negro pintado no muro lia-se: Rua da
Seara… Faltava saber onde vivia a «Santa de Fafe…»
À
sombra projectada pela parede fronteira, mendigos lazarentos coçando-se com
fúria, assistiam, sem interesse, às nossas manobras… E só um deles se agitou um
pouco para lamuriar a pedincha duma esmola.
Aproveito-o
e indago:
-
Onde está a Santa?
E
ele rectifica:
-
A «santinha», quer dizer! É ali… no nº 9…
Mas
não entre agora: está lá gente…
Pouca
impaciência tive de sofrer… Minutos depois saíam de lá duas mulheres do povo, com pesado oiro
sobre o seio avultado – e com os lenços ramalhudos a mascararem-lhe as caras…
Avancei
uns passos… Um auto veloz antepõe-se entre mim e a casa da santa… Dêle apiam-se
uma senhora e uma criança… Tamborilam, ao de leve, na porta de ferro… Repetem o
chamamento três vezes… Depois, entram…
Novo
compasso de espera. Recolho-me na sombra – de camaradagem com os mendigos.
E
pergunto-lhes:
-
É sempre assim – a bicha à porta da «Santinha»?
-
Vem muita gente de fora visitá-la – pedir-lhe «favores» para Deus… Que ela é
muito «milagreira»… Só o «pessoal» de Fafe é que não crê no seu poder e na sua
santidade… E isto tem-na prejudicado muito… Antigamente até apareciam aí
senhoras de Guimarães e do Porto e de Lisboa…
E
a seguir, estendendo a perna ulcerada para além da sombra, buscando um pouco do
calor do sol para as feridas, o mendigo filosofa:
-
O senhor já sabe… «Santos de casa…»
A
FAMA DOS MILAGRES E O FENÓMENO DA BAVIERA
Ao
que parece, a fama de Maria de Jesus, a «Santinha de Fafe», alastrou-se, há
muitos anos por todo o Minho… Contudo só agora ela chegou até às linotypes dos
grandes jornais… E para isso foi preciso que fizessem vibrar o patriotismo dos
que calavam a sua existência…
Estamos
numa época fértil em milagres, aparições e fenómenos onde os crentes,
sinceramente, vêem o cinzel de Deus a gravar nas águas e nas almas os vestígios
da sua própria passagem – e onde, algumas vezes, a sacrílega ambição dos
homens, toca com a brutalidade, no fito de amealhar ouro, burlando a fé e
insultando os Céus… E estes fenómenos, verdadeiros uns, grosseiramente
artificializados outros, irrompem por toda a parte…
Ontem
foi uma nuvem que se recorda no suave perfil de Jesus e que assombra uns
pastores das Vascongadas… Hoje, uma histérica que se corresponde com os Edens
Divinos…
Ámanhã
uma fonte que estanca todos os males, mesmo os que não torturam a carne… Mas o
que predomina notavelmente, nesta estranha revoada de milagres, são os fenómenos
histéricos, que, nas trevas da Idade Média teriam levado os doentes às
labaredas do auto da fé – e que agora fazem ajoelhar, à sua volta, multidões
fanáticas – contra a vontade, por vezes, da própria Igreja…
Há
semanas os telefones da Chicago-Tribune – órgão oficial de todas as
excentricidades e de todos os caprichos do Mundo, entre a história de uma
menina que nascera com duas cabeças e a profecia dum astónomo hindú que garante
o esfacelamento do globo terrestre para… ontem à noite – trouxe-nos a notícia
dum prodigioso fenómeno de misticismo registado na Baviera… Tratava-se de uma freira, Neuman, caída em
transe, insensibilisando-se até ao extremo de viver, há não sei quantos anos,
sem ingerir uma côdea ou uma gota de água… E acrescentava que a revelação do
mistério levara para junto dela todos os pernaltes da sciência alemã – mas que
o enigma fisiológico da mística, depois de lupado, de transparentado por todos
os rádios – mantinha-se graníticamente inviolável…
Foi
então que os conhecedores da «Santinha» de Fafe se alvoraçaram… Podiam lá
consentir que os alemães se vangloriassem com tal fenómeno – se eles possuíam,
em terra de Portugal, outro muito mais completo, muito mais intrigante, muito
mais poderoso?
E
daí a epistolaria na imprensa. E daí a controvérsia… Uns juravam, convencidos,
obsecados, que jamais na história da Humanidade, se notara o milagre tão
surpreendente… E os outros ceifavam, impiedosamente, a crença firme,
negando-lhes a veracidade, insinuando embustes e justificações para ilusão dos
cegos ou dos míopes…
E
por isso eu viera a Fafe; para observar de perto o mistério da «Santinha»…
O
SOMBRIO SANTUÁRIO…
Chegára
a minha vez…
O
santuário de Maria de Jesus é um casebre térreo, estreitíssimo, estrangulado
entre duas casas fortes e pesadas… Uma porta de ferro – e uma abertura
quadriculada a fingir de janela…
Bati
três vezes sem obter resposta… à quarta, uma voz fresca indaga quem vive… Gente
de paz que desejaria falar à «Santinha»…
Murmúrios… A porta abre, muito de vagar, o mínimo espaço possível para a
passagem dum homem… A penumbra adensa a atmosfera do cubículo… Apenas uma seta
de suja luz, esguichada pela frincha, perfura as sombras que nos envolvem…
Especada
à minha frente está uma rapariga nova, duma brancura saxónica de epiderme – e
com um petiz rechonchudo nos braços a sorver-lhe, sôfrego, o seio opulento… As
suas íris berrantemente azues fixaram-se em mim, interrogativas,
investigadoras… Depois, num gesto lento do braço que tem livre, indica-me uma
cama… Sôbre essa cama, alta como um leito bretão, estende-se o corpo da
«Santinha de Fafe»…
E
uma agulha de gelo pica-me o dorso e sacode-me os nervos.
FALA A «SANTINHA»
O
corpo da «Santinha» quási que não levanta a roupa que a cobre – tal é a sua
magreza…
Deitada
sobre o lado direito e a cabeça semierguida sôbre o almofadão… O seu rosto é
dum moreno acinzentado… A magreza salienta-lhe horrivelmente a caveira
demasiado volumosa para a pele que a cobre… Uns olhos negros, perdidos em
olheiras violáceas… Um ar de choro esteriotipado nas múltiplas pregas dos
lábios dão vida, garantem uma circulação de sangue, regular, normal…
Um
rosário vermelho desfia por entre os dedos nodosos… Olha-me como se não me
visse.
E
pregunta:
-
É a primeira vez que cá vem?
-
É… Eu sou dos jornais e desejava…
Mas
ela não deixa concluir a frase. A suavidade da voz perde doçura.
-
Jornais? Eu nunca pedi a ninguém para que falassem de mim nos jornais… Nossa
Senhora bem o sabe…
Acalmo-a.
-
Há muito que está doente?
-
Há trinta e quatro anos…
E
depois, a custo, deitando as sílabas como se fossem pedras mui pesadas,
revela-nos a sua história:
-
Todos nós temos a nossa Cruz… É Deus que a dá – e só Deus nos pode cortar o
nosso calvário, quando entender…
«Há
trinta e quatro anos que não como nem bebo… Esta boca nem já sabe o que isso é…
Durante vinte quatro anos e sete meses os meus olhos não se abriram nem a minha
língua soltou uma palavra – uma só… Várias vezes estiveram para me enterrar –
julgando-me morta… Se eu até resistia aos ferros em braza com que me queimavam
a carne… Só há dez anos recuperei a vista e a fala… Segredos de Deus Nosso
Senhor… Êle lá sabe porque me faz sofrer tanto…
-
E sofre muito?
-
Sim… Muito… Nos últimos tempos piorei…
-
Mas o que sente?
Encolhe
os ombros – e desvia o olhar.
Insisto…
E ela cede, impaciente:
-
Se eu tenho o corpo em chaga, senhor…
Se
eu há trinta e quatro anos vivo assim, estendida sôbre a cama, sempre do mesmo
lado…
-
E porque é que não come? E porque é que não bebe?
-
Ai, meu Deus! Se eu não tenho vontade de comer! Se eu não tenho vontade de
beber!
-
E os médicos – o que dizem?
Perpassa
pelo seu rosto encarquilhado uma leve expressão de desprêso:
-
Os médicos? Que podem fazer os médicos?
Eles
estudaram, já se vê que estudaram muito…
Mas
como podem êles tirar-me este mal se não foram eles que mo deram? Só Nosso
Senhor, que que foi quem me mandou sofrer – é que me poderá salvar…
A
«KODAK-FOBIA»…
Calára-se,
fatigada, e enchendo o silêncio que se seguiu, de ais angustiosos…
Aproveito
êsse interregno para observar a scenografia… O quarto mal chega para a cama
onde ela vive estirada e imóvel… Ao fundo, um oratório cheio de imagens… Pelas
paredes estampas sagradas, em molduras lantejoiladas, retratos, muitos
retratos… Com disfarce e de esguelha – passo-lhes revista… Vejo damas bem
trajantes, nas fotografias… Vejo extensas dedicatórias rabiscadas em letra
inglesa, com pattes-de-mouches – mas não tenho tempo para ler os seus dizeres…
Do
tecto dependuram-se dezenas de cachos de uvas, mirradíssimas, massarocas de milho,
coloridas e sêcas, bananas negras de podres.
Ela
apercebe-se da minha surpresa e explica:
-
São presentes que algumas senhoras a quem eu tenho feito o meu milagresinho…
Coitadas…
Elas
bem sabem que eu nem sequer os provo…
Mas
para aí ficam… como relíquias…
Ouço
um ligeiro estalido metálico. Adivinho o que se passa e procuro, com o meu
corpo, fazer biombo ao repórter fotográfico que estende o elástico tripé em
preparativo à fotografia da «Santa»…
Mas
a moça dos olhos azues descobre-o e dá o sinal de alarme:
-
O que vão os senhores fazer? Querem tirar-lhe o retrato? Ah! Isso não! Nunca!
Ela não quere!
E
dirigindo-se para a «Santinha», denuncia-nos:
-
Olhe que vão tirar-lhe o retrato!
O
rosto de Maria de Jesus crispa-se, colérico:
-Em
minha casa, mando eu! Tôda a gente sabe que eu não quero que me tirem o
retrato…
Os
senhores não podem ir contra a minha vontade – ouviram?...
E
temendo que o «Kodak» do meu colaborador lhe desobedecesse – estende para fora
da colcha um braço ossudo e negro, enclavinha os dedos num longo bastão e com
ele, habilidosamente fecha os batentes de madeira da minúscula janela – tirando
a réstea magríssima de luz que nos restava…
E
depois, quási a pôr-nos com dono, lamenta-se:
-
Estou doente… muito doente… Custa-me falar…
Saimos
– com o «Kodak» vazio…
VOX
POPULI…
Eis-nos
de novo na Rua da Seara…
A
entrevista com a «Santinha» estava longe de esclarecer o enigma… Pelo
contrário. Obscurecera-o mais ainda na minha consciência…
…Ora,
a experiência garante-me que para essas obscuridades da vida íntima duma pessoa
– não há raio X mais poderoso do que a bisbilhotice das vizinhas… Afirmava-se
que Maria de Jesus fazia o seu jejum perpétuo graças a um truc de
prestidigitação… Talvez as vizinhas tivessem já brocado um pouco esse mistério…
A
noticia da minha vista espalhara-se pelo bairro… As janelas entreabriram-se e
os rostos curiosos espreitavam-me como se eu também fosse um «santinho» disparado
na Rua da Seara por algum misterioso alçapão… Escolhi os olhos mais
inteligentes – e para eles avancei. E a pregunta era só uma, nítida e
fulminante. A «Santinha» era, de facto, o fenómeno propagadeado pelos crentes –
ou burlava a boa fé da gente de fé, alimentando-se às escondidas?
E
a vizinha encolhida, acamando os bandos negros, para disfarçar o nervosismo
daquela inédita situação de entrvistada por «um senhor dos jornais», responde:
-
Olhe… Eu não lhe falo a ela cá por causa de umas coisas – mas a ver4dade deve
dizer-se: nunca a vi comer…
-Sim…
O povo é que conta que ela, de noite, manda vir comida pelas criadas – feijão,
bacalhau e até vinho… Conta até que…
Solta
uma gargalhada e cala-se.
-
?
-
Nada… Não é nada! Só o que lhe posso dizer é que nunca a vi comer… O povo não
crê no milagre…
-
Mas o povo de Fafe é hereje?
-
Não… Temos muitos religiosos… Mas não querem acreditar na santidade da Maria de
Jesus…
-
Que idade terá ela?
-
Ao certo não sei… Mas minha mãe, que a conhece desde pequena, diz que regula
pela sua… Ora a minha mãe fez cinquenta e dois…
-
E o que fazia a «santinha» … antes de ser «santa» ?
-
Ela é de Basto… Os pais dedicavam-se à lavoura… Veio para aqui e empregou-se
como operária numa fábrica. Foi então que lhe deu o ataque e ficou sem fala…
-
Dizem que é rica?
-
Eu nunca lho contei – mas deve ter alguma coisa de seu… No tempo em que tinha
fama e vinha gente de todas as partes
procurá-la – ganhava muito boa esmola… Ela vivia então ao fim da rua… Depois
mandou fazer a casinha onde está agora… E como não come, não gasta, e como não
gasta, vai amealhando o seu vintém…
Esgotado
o formulário – esperei que me caísse do céu alguma revelação… E como não caía,
preguntei, sorrindo:
-
Então não quere dizer-me o que é que o povo conta mais a respeito da «Santinha»
?
-
Não digo, não! São disparates…
E
soltando uma gargalhada, soava a falar, a discreta vizinha lá ficou depositária
fiel do segredo…
A OPINIÃO DA IGREJA
A
verdade! Eu queria a verdade – nem que fosse um dogma, porque nesse caso o
dogma já era uma ligeira resposta à minha curiosidade.
Embuste,
fenómeno fisiológico ou milagre desmoronando o castelo da Sciência – nenhuma
predilecção me levava a seguir, teimosamente, parcialmente, um só dos três
caminhos que irradiavam do enigma.
A
«Santinha» tanto pertencia á lupa experimental da Medicina – como aos dogmas da
Igreja… Começaria pela Igreja…
Fafe,
4 de Outubro
Reporter
X
In: Revista “ILUSTRAÇÃO” 2º ano, nº 44, Lisboa, 16 de
Outubro de 1927, p. 20 e 21
O
abade que há sete anos ciceroneia as almas da vila chama-se João Moreno. É um
abade jovem, cuidadoso de si, uns olhos negros que refulgem viveza. Espírito
moderno – dentro da evolução da própria Igreja – a sua palestra fluente, clara,
por vezes brilhante, revela uma consciência sensível e uma inteligência
cultivada.
Vamos
encontrá-lo na cêrca do seu templo, em obras, dirigindo os operários. Liga a
nossa conversa um pretexto: se ele conseguiria de Maria de Jesus, atacada de
«Kodak-fobia», consentimento para a fotografarmos.
E
a sua atitude desenha-se imediata com toda a clareza:
-
Posso tentar o que me pedem – mas sem esperança alguma de êxito. Devo mesmo
declarar-lhe que, se eu, como sacerdote, cumpro o dever de a visitar a miúdo e
de confortá-la como posso, não tenho a menor afinidade com essa criatura…
-
Nesse caso o «milagre»… a «santidade»…
-
Não! Não posso, por respeito à minha própria religião, colaborar de longe
sequer com a falsa crença urdida, sabe Deus por quem, mantida, durante muito
tempo, sabe Deus com que fito…
«O
Supremo mando, a Igreja, na selecção de existências imaculadas e dignas de
serem mais próximas de Jesus, emprega, entre outros meios, o estudo do uso e
frequência de sacramentos. Ora Maria de Jesus não pede senão de longe em longe,
que a Igreja a sacramente…
-
Mas ela está há tantos anos aparafusada ao leito… - insinuei.
-
Se Maria de Jesus possuísse, de facto, uma fé tão ardente como proclama, podia
pedir a sua casa, sempre que quisesse, os sacramentos. A Igreja – sobretudo na
sua moderna orientação – enche-se de facilidades nesse sentido…
«Mas
há mais… há muito mais,,, É que para Santa faltam a Maria de Jesus muitas
virtudes. Dotada de um carácter irascível, encolerisa-se à menor causa… Conheço
pessoas que foram ofendidas de palavras – porque não aceitavam como dogma, logo
à primeira vista, a sua santidade.
Ora
um santo, precisamente porque o é, sofre com aquela resignação humilde que
Jesus Cristo nos ensinou, não digo já contrariedades – mas até os piores
insultos…
Estava,
pois, negada pela Igreja, a lenda da Santidade. Faltava agora saber a opinião
do abade sobre o «fenómeno» em si. Um caso inédito ou inregistado, mas de molde
a caber dentro da sciência – ou «milagre», pelo menos, pelo menos pela sua
inexplicação?
-
O diagnóstico de Maria de Jesus pertence aos médicos e não ao sacerdote…
Contudo existe já um péssomo ponto de partida, evidente, comprovado. É que essa
mulher faz da crença e das lendas tecidas à sua volta um negócio – em proveito
próprio. Não havia prémio de Deus que se extinguisse logo que aproveitassem em
tal indústria. Mas se Maria de Jesus não come, não tem a menor necessidade
fisiológica – para que quer ela o dinheiro?
«
A fama fortaleceu-se durante uns anos, por mera coincidência. Um pobre de
espírito foi consultá-la para lhe pedir interferência para a resolução duma
demanda. Ganhou o crente – e depois de recompensar aquela que julgava autora da
sua victória – espalhou aos quatro ventos os seus poderes extraordinários…
«Êsses
poderes teem-se manifestado, por vezes, de forma bem estravagante… Um dia, uma
dama brasileira veio visitá-la para que o seu espírito mui esclarecido lhe
indicasse duas serviçais, dignas dela, que a acompanhassem ao Rio de Janeiro,
sem perigo de desgosto nem de despezas de reexpatriação. Pois bem… Maria de
Jesus não podia escolher melhor: indicou à boa fé da senhora brasileira as duas
raparigas de pior reputação e pior vida desta terra… E tanto assim que apenas
de mantiveram no Rio uns meses.
«Isto
no que se refere aos «milagres» consequentes do seu «milagre»…
-
E com respeito ao «milagre» físico -
chamemos-lhe assim?...
O
abade cruza os braços e com um ligeiro movimento de cabeça, responde:
-
Não creio nele… Creio, sim, no jejum consequente do estado cataléptico em
esteve durante uns anos. No seu jejum actual – não!
«Correm
muitos dizeres entre o povo – e eu não posso acolhê-los porque sei o que vale a
fantasia popular… Mas comprovou-se que todas as noites entra em casa de Maria
de Jesus um homem, encarregado por ela, de acender a lâmpada do oratório – e é
– ao que parece – quem lhe leva a comida.
«É
verdade? Não o é?
E
o jovem abade de Fafe remata as suas declarações, a que não faltam nem nitidez,
nem firmeza, nem inteligência – com um vago encolher de ombros.
Decididamente
o «caso da Santinha» não lhe interessava nem ao seu espírito estudioso nem à
sua consciência de sacerdote.
A
PINIÃO DA SCIÊNCIA
A
misteriosa Maria de Jesus tem sido assistida, pelo menos nos últimos anos, pelo
dr. Maximino Matos, antigo deputado, médico do Hospital e clínico que gosa de
justificada glória em toda a região. O dr. Maximino Matos é, sob todos os pontos
de vista, um jurado precioso para este julgamento, em que a verdade parece
sentar-se no banco dos réus.
Oferece-se,
com amável espontaneidade, à impertinência do repórter e ele cede em
acompanhá-lo de novo a casa da «Santinha». E pelo caminho, que é curto, abre,
de par em par, a sua consciência:
-
As características da Maria de Jesus são gémeas às notadas no fenómeno de
misticismo de Baviera… Até a ulceração da perna direita, as distribuições das
chagas coincidem como se fôssem registadas por um mata-borrão…
«Sôbre
o inicio do «transe» - chamemos-lhe transe – correm duas versões. A primeira –
que ela mantem e defende – é que foi surpreendida pelo ataque de catalepsia
quando mourejava numa fábrica da vizinhança… A outra, que ela nega e combate
desesperadamente é que, muito novinha ainda, atravessara o Marão, todo gelado e
que a maternidade a surpreendera, ficando nas longas horas que se lhe seguiram,
inanimada sobre a neve.
«Scientificamente
esta hipótese é verosímil e explica a catalepsia em que ela mergulhou durante
vinte e quatro anos, insensível ao fogo e a todos os processos de reacção a que
a sujeitaram.
«Até
aqui nada existe de inexplicável no «seu caso»… A continuidade, sim. Maria de
Jesus desperta, recupera a fala, mas prossegue insencibilisada quasí por
completo e a sua circulação mantém-se sem que ela tome o menor alimento – sem
que sequer ingira uma colher de água…
«Durante
o estado cataléptico, o enfermo não se alimenta naturalmente, queimando então
todas as reservas do seu organismo, diminuindo, pouco a pouco de peso, a pesar
do pouco gasto que faz o seu funcionamento interno – obrigando os médicos a
alimentá-la indirectamente…
Mas
Maria de Jesus há já 34 anos que não come nem bebe. Maria de Jesus há dez anos
que vive fora da catalepsia… Não há reservas que resistam a tão longo gasto sem
renovamento… E Maria de Jesus, pelo menos no que me é permitido constactar, não
dininue de peso… E há mais: não exerce nenhuma necessidade fisiológica. É uma
múmia… um objecto que pensa e fala por um mecanismo de motu-contínuo fora do
alcance da sciência experimental.
-
O doutor não admite a existência de uma mistificação? Não julga possível que
ela se alimente às ocultas?
Dr.
Maximino Matos vai a pronunciar uma palavra que não chega a articular. Hesita
um pouco – e depois fala, sem peias:
-
Eu sou um médico, habituado, desde a escola, a desvendar os mistérios do corpo
humano… Sou além disso, um espírito moderno e liberto de todas as obsessões.
Podia dizer-lhe, apoiado nas minhas próprias ideas que o «fenómeno» de Maria de
Jesus estando ainda na zona das trevas – não tardaria a ser explicado… Mas não
é assim. O «caso de Maria de Jesus» está impenetrável!...
«
Que ela ludibrie o público – também não creio. Tenho a certeza que não se
alimenta, de facto. Ela não pode levantar-se… As criadas que com ela se zangam
e se despedem; e as próprias vizinhas despeitadas por este ou aquele motivo –
podem dizer mal do seu génio: o que nenhuma afirma é que a tivesse visto comer
ou beber.
«Não…É
preciso acreditarmos que estamos frente a um «fenómeno» impossível de estudar,
visto que ela se nega não só a um internamento num hospital como até a que a
auscultem e que examinem de perto…
O
mistério continuava rodipiando à minha volta, cada vez mais intrigante… Só me
faltave aquele paradoxo… Que o médico acredite no que o sacerdote nega…
RIDEAU…
Estávamos
chegados à casa da «Santinha»… A moça da alvíssima epiderme e dos olhos azues,
que pouco antes encontrara junto à doente, rondava, de longe, o santuário… O
dr. Maximino Matos fala-lhe:
-Deixe-me
cá, sr. Doutor… Ela está muito excitada desde a visita destes senhores… Logo
que eles saíram pôs-me fora de casa, dizendo:
«-Hoje
não voltas cá… Não recebo mais ninguém… Não quero ver mais ninguém!»
Mas
o ilustre clínico tem ainda uma esperança. Pé ante pé aproxima-se da porta de
ferro do nº 9… Bate quatro vezes… à quarta, uma voz impaciente pregunta quem é…
-
Faça favor de abrir… É gente amiga…
-
Tenham paciência… Hoje não recebo visitas…
-
Mas sou eu… o seu médico.
E
a «santinha», com ou sem ironia, responde:
-
Não posso recebê-lo, sr. Doutor… Estou doente… muito doente…
E
assim termina a reportagem… E assim fica a charada – sem decifração…
In: Revista “ILUSTRAÇÃO” 2º ano, nº 45, Lisboa, 1 de
Novembro de 1927, p. 35