Localizada no sítio da Ramalheira, em local ermo e recôndito, por onde passava o velho caminho que ligava Santa Maria de Aboim ao lugar de Lagoa, a capela de São João de Latrão surge, ao caminhante, de forma admirável. Ninguém que por ali passa fica indiferente à ruína daquela antiga orada que resistiu à passagem do tempo e aos caprichos do homem, pela robustez da sua estrutura em silhares graníticos, bem esquadrados e travados.
A partir de uma planta
simples, denunciadora de um arcaísmo enquadrável no românico tardio dos séculos
XIV ou XV, o pequeno templo apresenta um nartex (átrio) com bancos de pedra
laterais, que antecipa a entrada para uma nave rectangular por um amplo portal
de volta perfeita e uma modesta abside (altar-mor) quadrangular, ligeiramente
descentrada da cabeceira da nave, demarcada por um arco cruzeiro de volta
completa. Na parede norte, um pequeno nicho que já não conserva a imagem do
padroeiro e, na parede oposta, uma pequena fresta, fonte única de luz natural,
garante do recolhimento religioso de outros tempos.
Junto à entrada, do lado
direito, uma tosca pia baptismal separada da sua base.
Nas paredes interiores ainda
são visíveis restos de um alvo reboco, frenesi de “modernidade”.
NOTA HISTÓRICA
Sobre a capela de São João
de Latrão ou da Ramalheira, encontrámos, até ao momento, uma referência em
1692, pela pena do Padre Torcato Peixoto d’Azevedo, na sua obra, “Memórias
Ressuscitadas da Antiga Guimarães:
«Sahindo
da Lagoa para nascente meia legoa, em uma brenha está a Ermida de S. João de
Latrão, que tem um Ermitão, e ali nasce o cauteloso rio de Barca Cova, que
pouco distante se passa em ponte».
Prova irrefutável da
existência da capela (ermida) no século XVII.
Trinta e quatro anos depois,
em 1726, Francisco Craesbbeck afirma que a capela já se encontrava “destruída”
e as casas de um antigo lugar, que ainda não identificamos, demolidas.
O mesmo autor aponta o nome
de um importante fidalgo da antiga linhagem dos senhores do Morgado da Taipa,
em Cabeceiras de Basto, que terá vivido naquele local. Uma questão para a qual
ainda não temos resposta.
«A
sobredita capella de São João de Latrão, se acha hoje destruída e as casas
demolidas, depois do falecimento de Manoel Luis de Saldeanha, Senhor do Morgado
da Taipa, que ahiviveo alguns anos, retirado, sendo aquellecitio (ainda que
retirado) aplasivel à vista e vida contemplativa, o que ainda mostrão os
vestígios das murtas do jardim, que então havia e as muitas agoas daquele
citio.»
Em 23 de Maio de 1758, o vigário de
Aboim, Joseph de Meireles Pacheco, respondendo a um inquérito à sua paróquia,
fez menção à Capela de São João:
«Tem
esta freguesia a capella de Sam Joam chamada da Ramalheira por estar situada
entre arvoredos. É soliária, accomodada e remitiva. Hé tradiçam vulgar fora
fundada por hum fidalgo dos da Taipa de Basto que hoje hé Dom Gastam Coutinho
que [ ] aquelle sitio fora penitenciado por sua santidade por alguns delitos. E
que das suas rendas tinha fábrica, que se perdeo desde tempos que nam lembra. E
no dia do Santo, vinte e quatro de Junho, concorrem à ditta cappella de
romagem, muitas pessoas das freguesias circunvezinhas, e quatro clamores com o
desta freguesia […]
O depoimento do
pároco da freguesia de Aboim, conhecedor do território, levanta algumas
dúvidas. Ficamos sem ter a certeza se, no início da segunda metade do século
XVIII, o templo em foco estaria funcional para o culto religioso.
Não teria sido
acatada a “penitência papal” por eventuais delitos, e a capela foi entretanto
reconstruída, já que o clérigo inquirido afirma a manutenção da romagem de São
João em 24 de Junho?
As informações
conhecidas de setecentos são parcialmente contraditórias e ficamos sem conhecer
o real estado de conservação da orada da Ramalheira, que, parece-nos, teria
fundação particular, provavelmente por algum nobre, eventualmente ligado ao
Morgado da Taipa…
Chegados ao último
quartel do século XIX, encontramos o templo de São João em mau estado de
conservação, mas ainda com o seu “altar”. A informação chega-nos do ano de 1887
pela mão do pároco da freguesia de Aboim, Augusto César de Carvalho, que também
exercia a função de presidente da junta da paróquia local.
Em livro de actas da
junta da paróquia de Aboim, em 20 de Fevereiro de 1887 o presbítero escreveu:
“…reparar as tapaduras das portas da capela de
São João da Ramalheira para assim obstar a que as fazendas ali pastassem.”
“…há
um altar na capela de São João Batista no lugar da Ramalheira, em estado
sofrível, um cabido e um cruzeiro em frente, com um bocado de mato ou bravios
que produzem casca e lenha”.»
Sem outras
informações, alcançamos o tempo da implantação da Republica, que, bem cedo, aprovou
a Lei da Separação da Igreja do Estado em 20 de Abril de 1911.
Na época o governo
mandou fazer o arrolamento de todos os bens da Igreja e a paróquia de Aboim não
foi excepção.
No livro de
arrolamento da referida freguesia, datado de 24 de Julho de 1911 transcrevemos
a informação seguinte, referente à capela de São João de Latrão:
«Uma
capella sita no lugar da Ramalheira contendo um altar com meia banqueta e uma
imagem de Sam João Baptista. (a)
Tres
bocados de terrenos de matto de lenhas e um cruzeiro de pedra.
E
não havendo mais nada que inventariar se lavrou […] este arrolamento que fica
manifesto em duas folhas ficando a primeira rubricada pelos membros da Comissão
e esta devidamente assignada, depois de lido por mim Miguel Alves Passos,
secretário, que o escrevi. (b)
(seguem-se as assinaturas)
Gervasio Domingues
d’Andrade
José Francisco Cerdeira
Miguel Alves Passos
Notas:
(a) Foram
furtados os castiçais e imagens – Veja ofício nº 92, de 29-7-1927, da Comissão
Concelhia – Na gerência de 1926-1927 foram vendidos em hasta pública alguns
materiais deslocados da capela.
(b)
Entregues
ao benefício por auto de 23/8/44, processo nº 18:144/87»
Se existem dúvidas
relativas à conservação e utilização para o culto religioso deste templo a
partir de finais do século XVII, ficamos a conhecer o momento que, em
definitivo, sentenciou a capela de São João: o inicio da segunda década do
século passado, precisamente com o “golpe” provocado pela controversa Lei da
Separação da Igreja do Estado, que privou a Igreja secular dos seus bens
materiais.
A velha capela de São
João de Latrão ficou entregue à sua sorte, votada ao abandono, sem antes passar
pela “humilhação” de ver a sua porta vendida em hasta pública!
«No
dia 8 de Junho, pelas 13 horas, na administração do concelho e por ordem
superior, há-de proceder-se á arrematação em hasta publica, do seguinte:
(…)
uma porta de castanho, a madeira e outros materiaes deslocados da capela de S.
João da Ramalheira, da freguesia de Aboim, sendo a base de licitação 100$00 (…)
»
In: jornal “O Desforço”, 2
de Junho de 1927
A FECHAR
A capela de São João de
Latrão corresponde ao mais antigo testemunho, com feição original, da
arquitectura religiosa do concelho de Fafe, ostenta características
construtivas que sugerem uma antiguidade atribuível ao final da Idade Média,
compatível com a arquitectura românica do norte de Portugal.
Estamos perante uma ermida
rural, provavelmente fundada por algum nobre, associada a um pequeno aglomerado
populacional, cujos vestígios materiais foram apagados pela voracidade do
tempo.
Tradicionalmente, este
templo é apontado, por alguns, como antiga igreja paroquial de Aboim.
Parece-nos, no actual estado do nosso conhecimento, que esta ideia não se
confirmará. Contudo, é aconselhável não excluir, à partida, uma tradição com
profunda raiz popular
As escassas informações que,
até ao momento, conseguimos recolher não nos permitem ir mais além no estudo
desta pérola do património religioso fafense.
Há muitas décadas votada ao
abandono, a capela da Ramalheira foi redescoberta em 2006, por iniciativa da
Junta de Freguesia de Aboim, que, em parceria com o Grupo “Restauradores da
Granja”, promoveu um percurso pedestre, recuperando o antigo caminho, libertando
o templo da nefasta cobertura vegetal.
O sítio da Ramalheira, com a
sua capela e cruzeiro (apenas conserva a sua base) fronteiro foi, outrora,
palco de romarias em honra de São João Batista.
Abandonada, espoliada e
esquecida, a pequena ermida não perdeu a sua feição original e mostra-se como
uma ruína monumental que, na minha opinião, deve ser consolidada e preservada
tal como chegou aos nossos dias.
Restaurá-la seria aniquilar
o seu encanto e furtar-lhe a sua genuinidade!