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23/10/2021

FIGURAS DO MEU TEMPO | por Ruy Monte

 

Capela da Senhora do Carmo anexa à Casa do Santo Velho
 


«FIGURAS DO MEU TEMPO

Padre António

Por Ruy Monte

Eu não devia ter mais de dez anos.

Não tinha, não.

Juntamente com um companheiro da escola, comecei a ajudar à missa a este santo sacerdote.

Celebrava ele na capela do Santo Velho.

No fim de cada missa, lá vinha sempre a borracheirona e grossa criada daquela casa servir-nos o pequeno almoço. Café com leite e pão com manteiga.

Que bem nos caía aquele mata-bicho, depois de uma hora ou mais de prisão na capela!

- Presos? Presos, sim, mais de uma hora, porque o nosso querido Padre António tão santa e devotamente celebrava que chegava a parar em êxtase, na consagração.

Era preciso puxar-lhe pela alva:

-Sr. Padre António! Sr. Padre António! Já consagrou! Já consagrou!

Estremecia, como se acordasse… e voltava normalmente ao mesmo encantamento celeste…

 

 

Só conheço na língua portuguesa uma palavra que possa definir cabalmente esta figura singular da nossa terra: Santo.

Era realmente a santidade em pessoa, mas santidade verdadeiramente angélica, feita de todas as inocências da criança e dos místicos arroubos do anjo.

Tão simples, tão inocente, tão despido de amor de si próprio e tão longe das mais pequenas malícias até da criança, que dificilmente se compreendia como é que um homem pode tornar-se adulto e pode formar-se padre, sem chegar a conhecer o mundo e as suas maldades.

Mas também tão conhecida era de toda a gente a sua inocência que ninguém se escandalizava com os seus actos, por mais estranhos e anormais que parecessem.

Pois, às vezes, eram mesmo inconcebíveis em qualquer um de nós.

Toda a gente tinha a impressão de que o Padre António não andava neste mundo e que a sua evolução física e moral não tinha passado dos três ou quatro anos de outros tempos.

Era assim, certamente, que o nosso pai Adão cirandava no Paraíso Terreal, antes da parra e da maçã fatal…

Qualquer garoto o enganava com mentiras e desastres, que o punham logo a correr ou a rezar.

Qualquer mulher leviana lhe enfiava o braço na rua e o passeava no Largo, todo satisfeito com a sua companhia.

Qualquer falso pedinte lhe apanhava três ou quatro esmolas ao dia, sem dar por isso.

E era preciso que a criada Laurinda lhe escondesse dinheiro, roupas e géneros, para que ele não esvaziasse a casa!

 

 

Das muitas coisas estranhas que fazia quase diariamente vou mencionar apenas a que costumava praticar com qualquer mãe modesta, que encontrasse, na rua, a amamentar o filho.

Aproximava-se, muito lento e muito alegre, abria-lhe com toda a naturalidade a blusa, e erguia as mãos para o céu, balbuciando como os anjos hão-de cantar, certamente, no canto das onze mil virgens:

- Ai! Que tu tens muito leitinho para o teu menino! Deixa lá ver! Deixa lá ver!

Toda a mulher humilde sorria satisfeita, sem corar e sem revolta, mostrando os mimos, à vontade, que Padre António tocava com mãos de seda e logo benzia como um santo:

-Agora, agasalha-te muito e não deixes o menino passar fome.

Foi Deus que te deu esse leitinho todo para ele…

A criança continuava o seu pequeno almoço. A mulher compunha lentamente a blusa.

Padre António retirava-se, rezando as contas.

E, certamente, lá de cima, do Paraíso, Deus e os Anjos vinham espreitar tão formosa cena inocente, só própria dos tempos bíblicos, em que ainda Lusbel não reinava neste mundo…»

 

In: jornal “Justiça de Fafe”, nº 139, 11 de Outubro de 1979. P. 8.

 

Acreditando que Ruy Monte tinha dez anos de idade, esta crónica aconteceu pelos anos de 1912… O autor nasceu em 1902 


Reprodução do jornal "Justiça de Fafe", nº 139, 1972

17/10/2021

FIGURAS DO MEU TEMPO por Ruy Monte | Os hotéis de há 60 anos


«De 1908 a 1912 – com a ditadura de João Franco, proclamação da República e invasão do Couceiro – duas pensões se criaram, em Fafe, na categoria de bons hotéis citadinos.

No largo, foi o Hotel da Felismina, onde essa extraordinária cozinheira, com a fama dos feijões com tripas, óptimo pão de ló, assados e saboroso verdasco de três estalinhos de boca, enchia a sala e a loja de fregueses.

Era o hotel dos republicanos..

Nas tardes de domingos e quartas-feiras, não faltavam dezenas de fregueses a fazer o quilo da feijoada, da carne assada e do vinho de Basto, com vivas ao Afonso Costa e ao Alferes do Ribeiro.

Eram muito boa gente os donos do hotel!

Mas cuidado com o marido da dona do hotel!

Forte, sério e facilmente colérico, com a maior das facilidades borrifava com vinho os queixos dos fregueses que lhe fizessem qualquer observação sobre o serviço.

Entre muitos casos destes, certo lavrador de Seidões, que já tinha o bucho atestado para as três léguas do caminho, permitiu-se dizer-lhe que a caneca mal cheia tinha um galão de major.

Resposta imediata do dono: - Ai, sim? Ai, sim? Deixa cá, deixa cá ver a caneca!, põe-na debaixo da torneira e deixa cair o vinho até deitar por fora e espalhar, no chão, obra de dois ou três litros.

- Está bem, assim. Está bem? Porto, Braga, Porto, Braga! Está bem assim?

E, novamente, rápido, como um tiro, atira-lhe à cara com vinho e com a caneca, deixando-o a sangrar e quase curado da perna.

E, como se nada fosse, correu a atender outros fregueses, com uma casquinada de riso que era sempre de mau agouro.

Naquele dia, não houve mais reclamações.

 



Ao cimo da vila, ao lado do Jardim do Calvário, fundou-se outro belo hotel: o Fafense.

Também ficaram célebres a sua vitela assada, o seu delicioso pão de ló e o óptimo tinto de Basto de se lhe tirar o chapéu.

Era o hotel dos monárquicos e dos abades.

Cascava-se-lhe forte e bem na vitela assada, no pão de ló e na tinta, sem olhar a despesas.

Na intimidade da sua loja interior protegida pelas estantes da mercearia, encostado às pipas, havia sempre um auditório de lágrima fácil, arrastado pela eloquência dos padres, orando pela boa sorte do senhor D. Manuel II.

Singular família a do dono da casa.

O pai, pelo exercício da arte, tornara-se desempenado e robusto atleta.

O filho mais velho, sacerdote culto e fisicamente um belo homem, impressionava pela diplomacia e pelo talento.

O do meio, um autêntico toma-lobos de força e constituição hercúlea, metia respeito, embora fosse muito correcto e respeitador.

O mais novo era o menino-bonito da família, verdadeiro fidalguinho na figura e no trato.

O pai e o Ezequielzinho, (o sufixo inho não é diminutivo) de racha na mão, faziam uma parelha de caceteiros, como ainda não vi, até hoje.

Como quer que fosse constou, numa noitada de S. Torquato de Guimarães, que alguém tinha rachado a cachola de um fafense.

- Oh! Pai da vida, que tal fizestes!

Sem mesmo o conhecerem, correr ao campo circunvizinho do mosteiro e armar-se dos cacetes que lá tinham escondido, por causa das coisas, foi obra dum momento.

O seu aparecimento, de varapaus no ar, provocou o alarido geral.

- Aí vêm os Ensambladores! Aí vêm os Ensambladores! (O povo pronunciava Xambladores).

E aquilo foi simples, como uma igualdade matemática: cada par de cacetadas = cada par de adversários estendidos.

Varreram metade da romaria, em meia hora!

À hora de se deitar o último fogo, já com o sol nascido, como era naquele tempo, ainda se contentava a refrega.

- Sim, senhor, aquilo é que foi bater!

E todos carregavam no verdasco das duzentas pipas do arraial, até não poderem fazer o quatro da ordem, com as duas pernas.

 

Mas que vitela, meu Deus, a gente comia nos dois hotéis!

Que vitela!

Que pão de ló!

Que verdasco!

- E por que preço!»

 

RUY MONTE

In jornal Justiça de Fafe, nº144, 20 de Dezembro de 1979




Laurentino Alves Monteiro
(RUY MONTE)
1902 - 1986